terça-feira, 30 de junho de 2009

Histórias de Fantasmas - Parte VI

Uma poça de água. Tépida e fria ao mesmo tempo. Vejo-me sentado numa sopa primordial de suor e lágrimas de terror, qual pensador de Rodin com uma enxaqueca monumental. Só me resta acordar deste pesadelo – e faço-o.

Mesmo antes de abrir os olhos vem-me à cabeça a dor do sonho e estou envolto em água, não, é suor. Começo a processar a tontura que voltou do sono para o despertar. Estou deitado numa cama que se encontra por baixo da janela de um quarto exíguo. As paredes são de um branco amarelado, doente e moribundo, infiltrado pelas humidades no tecto. Sinto-me dorido quando respiro e o coração palpita-me na testa. Atordoado e a desfalecer, fecho os olhos… Seria a noite passada um sonho febril?

Quando volto a mim já não estou sozinho. A figura de uma criança, estende-me qualquer coisa que não tenho força para agarrar. Perante a minha relutância a servil petiz pousa a carga na cadeira abeirada ao fundo da cama e vai-se embora sem um pio. Era um tabuleiro, olho, já desperto. Entra agora uma mulher – Como se sente hoje? – Pergunta-me ela. Respondo com outra questão – O que me aconteceu? – Não se lembra? Não admira. Deve ter batido com força. – Fez uma pausa e recomeçou. A minha filha encontrou-o acidentado ao fundo da estrada. Deve ter-se despistado e por sorte acertou num pinheiro que não o deixou tombar pela ribanceira abaixo. Não admira que me doa cabeça, pensei. – Aqui não temos carro nem telefone, daí que o carregámos para casa a meio da noite. Também não parecia estar ferido com gravidade, porque se mexia e falava. Claro que se me parecesse que corria perigo, eu própria tinha ido à Vila nova buscar o médico. – explicou ela como se quisesse desculpar-se. Eu é que agradeço os seus cuidados e peço desculpa se lhe causei transtorno – respondi, procurando relaxá-la. Passei por uma aldeia no caminho para cá, Vale de Gaios, terá sido. – Sim, nós chamamos-lhe “Vila nova”, porque existia uma mais acima com o mesmo nome, mas foi destruída por um incêndio. Foi nesse fogo que perdi a vista há mais de 10 anos – por esta não esperava. Abriu os olhos, deixando-me ver a lívida retina.

Sabia-o agora, tratava-se da mulher da noite passada, não era agora tão perturbante. O cabelo louro, apanhado com um gancho, parecia mais gasto à luz do dia. As suas feições indicavam que se tratava de uma mulher nos seus trinta e tal anos, embora o cansaço e o desgaste que eram notórios, a fizessem parecer mais velha, tornando-se difícil dizer a sua idade real. No entanto, possuía uma beleza invulgar, que não lhe era natural, isto é, a austeridade que adquiriu ao ter que se adaptar à cegueira conferiu-lhe personalidade nos traços físicos. A mágoa e a dureza da vida não lhe deram este aspecto, antes a resistência e a preserverança se impuseram e lhe permitiram sobreviver num novo mundo, sem luz.

Após um momento de silêncio incómodo, quis continuar a conversa – Vinha à procura da estrada nacional e o dono do café, “Os Três Tios” (penso que era isso), contou-me do incêndio que destruiu a estrada. Por isso, voltei para trás. A expressão dela tornou-se grave – Peço desculpa, porque acabei de me lembrar que tenho afazeres a tratar na cozinha. Volto depois para saber como está. – disse saindo visivelmente incomodada. Instintivamente lembrei-me do dono do café, “Flores”, seria aqui a casa dele?

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