sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Perguntei à Chama Escarlate...

É um sonho uma mentira quando não se realiza?

No leito dos sonhos a realidade me tirou ao calor da escuridão, já aí senti o pano frio quando me trouxeste para dentro.


Quando as mãos se encontram e os corpos se juntam há faísca?

Que desconfiada és na tua incendiária personalidade e quão pérfido fui eu ao puxar a labareda, que por onde passou tudo despojou de vida.


Será “confiança” um palavrão a que só os mentirosos recorrem?

Debaixo da guilhotina tão séria parecias, com o canto da sereia estudado fiz eu de algoz carrasco, mas já há muito que se tinha ido o escalpe.


Onde estão agora tão belos escritos que te podia dedicar?

Já não sei, foram com as ondas do mar e com elas voltarão se eu deixar. Amargo me tornei e para muitos assim já o era, no entanto consigo sorrir ao teu lado, enfastiado de tão doce veneno.


Porquê despedir de quem não parte?

Porque a espada é a minha arte e recto fui ao dela falar-te, quando te encostei à parede e mostrei o mal.


Um cego recusa-se a ver?

Só para quem não quer saber, porque um cego é um cego e nós não fazemos caridade sem ponta de maldade.


Quem tem pena agora?

Quase de certeza devo ser eu (tu sabes no que isto deu).


E então? É mentira o sonho que não se concretiza?

Para mim é algo pior. Isto porque enquanto não se vê a mentira, o que existe é verdadeiro.


E quem somos nós para matar a realidade?

Tu foste minha e eu fui teu, os dias passaram e hoje já nada aconteceu. A memória que eu vejo em sépia, vês tu por um caleidoscópio e dizes que é confusão. Pois enquanto sonhávamos te olhei e eras escarlate de paixão.


quinta-feira, 30 de outubro de 2008

No Vermelho

Impulsionado pela intenção da Radio Crítica, em querer publicar um texto sobre o nosso regresso atribulado de Lisboa, conto a minha versão da história:

Numa noite amena de Outono um grupo de pessoas despede-se e parte para o abrigo das suas viaturas. Aguardam trinta Quilómetros de asfalto. A atmosfera é tensa e o a magnetismo faz tremer o seu âmago. Uma frustração e uma raiva interior despertam e geram o temor. As portas fecham e as explicações começam.

Sinto que o turbilhão de emoções se adensa. A voz da consciência jaz dormente em mim. A velocidade aumenta e o cobertor de cimento voa esgotando-se em diante, enquanto o ponteiro sobe nas centenas. É reconfortante sentir o controlo e desafiar os seus limites, a máquina obedece e não falha de bem mantida que está. O bólide não lamenta o esforço e ruge contra o vento.

A concentração pesa no semblante e a consciência fala-me ao de leve, enquanto sofre com os devaneios febris induzidos pelos tais Jokers da vida, aquelas cartas inesperadas que podem dar ou tirar tudo num instante. Patético é quando estamos de joelhos perante o adversário e não reconhecemos o prejuízo. Os ecos da razão esbatem na couraça da paixão e o ponteiro caminha cego para o vermelho.

Sem me confrontar com limitações, o bom senso reflecte em mim a personagem do filme Vanishing Point, Kowalski, o piloto destemido que corria contra o destino e encontrou a sua morte. Cego, surdo e obcecado com uma velocidade transcendente que lhe mudasse o rumo à vida, também eu fugia de tais demónios, ainda que na realidade os perseguisse. Com esta simples alegoria caí no rídiculo e vi que tinha atingido o limite, estava já no vermelho das minhas rotações.

Ainda a tremer, acalmo gradualmente e escolho dar ouvidos à razão. Aceitei o prejuizo e paguei-o sem que isso me custasse tudo do que amealhei até agora. A velocidade mata quando o carro não oferece segurança, daí que quando chegamos ao vermelho é sempre bom saber que não precisamos de o ultrapassar, nem de travar a fundo. Sem comprometer a viagem, encontro conforto na ideia de que o destino esperará por nós.

O elenco:

Eu - Kowalski
Consciência - Super Soul
Ela - As herself

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

O Vampiro

À noite viajam os renegados, os esquecidos e os amargos pelas ruas vazias, completamente despojadas do movimento que lhes dá vida durante o dia. O negro manto é um refúgio artificial, mas ideal para quem não deseja o calor e atenção alheios.

No solitário passeio nocturno vagueia o Vampiro, sequioso de emoções verdadeiras, consequência de lhe ter sido retirada a alma ou do estado de dormência em que esta se encontra. Estes indivíduos são caracterizados pela ausência de laços afectivos duradouros, antes lhes é naturalmente imposto um estilo de vida erróneo sem outra escolha que não a de sobreviver com o afecto de que se conseguem socorrer no momento. No limbo entre a humanidade que lhes resta e a promessa de imunidade emocional estes seres estranhos percorrem um deserto de escuridão.

Sem ninguém de quem depender ou a seu cargo, os drenos humanos desenvolvem armas preciosas que lhes permitem assegurar a sua triste e vil existência. Exemplos característicos serão: a língua viperina, bem afiada e sibilante que lhes permite manipular com precisão as vítimas (através de frases feitas e elogios baratos); a carcaça amistosa, deceptivamente calorosa, que induz uma aura de confiança e permite a aproximação furtiva; na conclusão do elenco destes traços de baixa estatura moral está a mente algoz e hiper-racional, conferindo ao Vampiro a faculdade de cortar relações com qualquer peso morto que possa arrastá-lo para a luz.

Calcinados sentimentalmente, alguns Vampiros conservam recordações de um período de felicidade que antecedeu a sua transformação macabra. Essa vivência não é mais que uma noção intelectual de satisfação natural, que muitas vezes impõe ao indivíduo a necessidade de fugir ao instinto da sua nova raça. Tais sujeitos resistem ao chamamento visceral procurando refúgio nas artes e causas sociais, no entanto, mais tarde se apercebem do insucesso em retirar daí a quantidade de amor necessária para a sua subsistência a longo prazo. Nesta altura esta estirpe aparentemente mais nobre torna-se deveras perigosa, porque cede aos mais básicos instintos animalescos e mergulha num fosso amoral em que renega a selecção e preocupação com as vítimas.

A descida aos infernos que é o vampirismo faz-se por uma escadaria em espiral e uma vez chegado ao destino é cravada uma sede jamais saciável. O eterno vácuo simultaneamente impede a ascendência a um plano superior, como absorve progressivamente a humanidade que foi a nossa identidade em vida. Assim, no soturno abrigo que a lua confere deambulam sem destino os renegados, os esquecidos e os amargos.