quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Na antecâmara de 1001 portas: Parte IV

“também tu, parecia ela dizer-me, também tu hás-de sentir o travo desta paz e desta inquietação, perscrutando intimamente o teu próprio ser… - Tão obscuro como nós o fomos, e, como nós, erguendo-te acima de todos os ventos e mares, perdido numa imensidade que não guarda a mínima impressão, que não conserva memória alguma, que não regista qualquer notícia de vidas humanas.” – Joseph Conrad

No Céu de Todas as Possibilidades

Quase fortuitamente dirigi o olhar para oeste da nascente e através do labirinto reparei num ténue foco de luz que me indicou que não haveria de estar muito longe do regresso ao quarto. Era a entrada principal para o jardim e a minha saída airosa que estava no cimo de uma larga escadaria, que por sua vez terminava numa dupla portada de vidro. Ao entrar qual não é o meu espanto quando revejo o plácido criado segurando uma travessa com o que dizia ser a minha ceia; terminada a refeição interroguei-o sobre a localização da torre dos sonhos, ao que este replicou: É bastante simples amo, basta entrar pela única saída da antecâmara que não tem porta. Agradeci e tornei à antecâmara, mas mesmo antes de o fazer ocorreu-me perguntar: Porque não tem porta então? Se quer uma razão concreta não lhe sei dizer pois não fui eu que a construí, mas, logicamente será pelo facto de não ir dar a lado nenhum, amo.
Não compreendi (e até me questionei sobre a viabilidade arquitectónica de construir uma torre em tal palacete), no entanto, para lá continuei pelo tal arco que não tinha porta, subindo a escada em caracol até chegar à torre. Realmente foi como o pajem disse: não dava para lado nenhum; era uma minúscula sala redonda com duas janelas e sem tecto, curiosamente, encontrava-se instalada no centro da “torre” uma poltrona revestida por um tecido bastante singular, uma espécie de penugem que dava um conforto extraordinário à glorificada cadeira. O anacronismo do panorama convenceu-me a desfrutar do céu estrelado, enquanto me recostava confortavelmente na poltrona.
Senti o resto do universo pausar a sua rotina para me deixar ao leme, controlando tudo discretamente, através de um mero pensamento: Imaginei-me de novo na entrada, guiado pelo pajem através dos corredores que desapareceram num piscar de olhos para entrar na antecâmara; não entrei na sala do vício, ao invés procurei a porta que ligava para a entrada principal do jardim, voltei à clareira e lá encontrei a bela ninfa que antes tinha afugentado; enquanto me aproximava a mente borbulhava com coisas para dizer e era impossível não olhar para as suas feições delicadas, candidamente sorrindo com toda a sua voluptuosidade embrulhada num fino vestido branco – eu disse-te que nos voltaríamos a ver aqui – tanta beleza era intoxicante para os sentidos…
Tudo parecia bom demais para sentir só uma vez, pelo que tornei a pensar no ponto de partida: ainda com as emoções à flor da pele, queria distanciar-me para voltar a ser surpreendido por toda aquela panóplia de emoções, queria senti-las outra vez como se fosse a primeira, daí que no caminho para a antecâmara desviasse o olhar para recantos desconhecidos na tentativa de me absorver em pormenores aborrecidos; e aqui estava de novo na clareira, completamente rendido àquela deusa de branco – eu disse-te que nos voltaríamos a ver aqui – pousei os braços à sua volta e entreguei-me ao deleite de experimentar o toque daquele corpo quente, tão real como as estrelas no céu que se erguia na torre…
Não conseguia sequer exibir um esquisso da felicidade que estava sentir perante um quadro tão perfeito: já não via as areias do tempo escapulirem-se perante os dedos das mãos, nem o peso dos ponteiros caindo sobre todos os sonhos de jovem, silenciosamente segredando-me que a minha única oportunidade se desfazia entre receios e cautelas; podia agora repetir tudo de bom e corrigir o mal que havia feito.
Eu disse-te que nos voltaríamos a ver aqui – e tal aconteceu, a todos os segundos que a noite podia dispensar; não me queria libertar daquela doce aparência, pois aqui na cadeira não tinha que enfrentar a crua realidade que a cada esquina podia esconder uma desilusão, mais importante ainda era o facto de saber que não a voltaria a encontrar… Esses receios perturbavam-me deveras, a modos de querer concentrar-me no bater do coração enquanto pendia a minha cabeça no seu peito e já não sentir o calor que antes emanava. Atingiu-me a ideia do que lentamente acontecia, de que estava cansado de ter medo do facto que não podia manter-me na ilusão, de que tudo o que desejava estar preso às limitações dessa mente traumatizada. Foram as consequências de aprisionar o ser mais perfeito com quem me tinha deparado, foi o reflexo da minha tacanhez ao pensar que podia moldar alguém à minha imagem e ao mesmo tempo ambicionar olhar-me ao espelho. Já não consegui tocar-lhe quando o sol começou a raiar e uma lágrima foi tudo o que consegui exprimir no resplandecente funeral de uma fantasia que tentei viver.




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