quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Na antecâmara de 1001 portas: Parte III

O Jardim

As horas e talvez os dias passaram sem misericórdia na prisão de vidro onde, por auto-indulgência, me tranquei. Completamente imerso na saturação do cenário colorido onde me encontrava pareceu-me ser tocado por outra pessoa. Longos e esvoaçantes cabelos pretos voavam diante dos meus olhos, enquanto o mundo se desfazia num fresco e escuro vazio. Quando voltei a mim encontrei-me deitado numa cama de dossel envolvido em lençóis de seda e já não me sentia o desespero da sala do vício, o peso da impertinência já não pairava sobre os meus ombros. Estava num quarto de hóspede, julgando, pela ausência de personalidade, decorado apenas com a cama e uma cómoda que não destoavam da luxuosa paisagem presente em quase todo a propriedade. A maior curiosidade neste quarto era o facto de guardar uma entrada para o que seriam possivelmente os jardins do palácio; mesmo sem conhecer quem ou que me tinha carregado a esta sala, senti-me impelido a procurar refúgio nos verdes retiros.
Abri a porta e instantaneamente me deixei deslumbrar por tão belo aglomerado botânico: plantas e árvores de todos os tamanhos e feitios, guarnecidas por um cocktail de flores, cada uma de sua tez bem singular. Sem qualquer direcção definida continuei a andar, como se procurasse ser surpreendido a qualquer momento, a qualquer curva ou que algo irrompesse da vegetação; e mais cedo tivesse eu formulado esse pensamento, mais cedo teria ela passado por mim – noutro carreiro paralelo, banhada pelo leite lunar, estava uma bela figura feminina, cujos cabelos negros já antes tinham cruzado o meu olhar.
Segundos demoraram entre a aparição da mulher misteriosa por entre os arbustos e a minha reacção, mais do que previsível, de a perseguir sem hesitação: saltei desastradamente sobre onde antes vi um arbusto e agora senti um roseiral, mas, não deixei que os espinhos da paixão me atrapalhassem na demanda, pelo que me mantive na peugada até, ainda mais previsivelmente, me deparar com dois trilhos separados por uma densa e alta vegetação e aí me detive tempo suficiente para o breu da noite dar guarida à minha etérea fugitiva. Ainda assim, decidi arriscar um caminho e se algum tivesse que ser seria o da direita, pela óbvia conotação positiva. Continuei caminho por entre uma húmida e quente fileira verde escura durante não mais que cinco minutos, até encontrar uma clareira onde brilhava uma fonte cujo principal cliente era um cobertor de musgo que lutava contra a corrente na esperança de cobrir o que restava da pedra.
Após satisfazer a sede, uma voz rompeu o murmurar verdejante, como se jorrasse da bica juntamente com a água: Ousaste satisfazer dois desejos ao beber da fonte, intrépido explorador, pois ignoraste a minha forma aquosa e tornaste-me parte de ti, acarreta agora com as consequências da violação do meu ser que agora perscruta livremente a tua alma. Só me voltarás a ver na torre dos sonhos. Tal revelação deveria causar-me transtorno e perturbação, mas teve em mim o efeito contrário – mal podia esperar para nos encontrarmos na tal “Torre dos Sonhos”.


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