terça-feira, 31 de março de 2009

Viajar na música...

"it's the speed at which moments belong to the past,
and the flood that keeps coming and alarms that won't ring
are the reasons that I started time traveling"


"time functions just like a coil,
and bodies are roots if they just pierce the soil,
so let us remember the soft, fertile ground
and stare up the center of time going round"

quinta-feira, 19 de março de 2009

Metanoia

Eu gosto muito da vida, gosto muito de viver

Sentes este calor? Não penses no sol. Pensa em tudo – na areia, no mar, no céu, em mim. Nessa ardente candura passava a minha existência… e a tua. Como os grãos de areia escaldante deslizam, pachorrentamente, pelas mãos e não consegues resistir, perguntando-te se eles sabem o caminho ou é a brisa que os guia. Embalo os sentidos nestes pequenos milagres e finjo tocar-te – a tua pele lisa e incandescente – é como se chegasse a centímetros do sol; os teus cabelos sedosos e ondulados como o mar, ao longe, num vagaroso carrossel em movimento perpétuo; lá em cima são as nuvens os teus lábios, estão agora tão perto que toco cada sopro do teu respirar.

O ocaso vem de socapa surpreendendo-nos quase por acaso. Inspira agora o ar fresco da tarde e eu sigo a luz dos teus olhos. E falo-te ao ouvido, sussurrando sobre novos mundos e maravilhas que quero ver contigo – corada, ficas como uma estrela vermelha envolta pelo escuro da noite. Na fogueira que um relâmpago acendeu para nós, encontravas conforto, ficavas mais um pouco e perguntavas ao fogo se eu te conseguia ver no meio da praia deserta.

Idilicamente, já nada pode correr mal, esquece-te de tudo e procura-me, vê-me em todos e, em ninguém. Diz para ti que são estranhos bastante familiares e, se procurares eu estarei a sorrir; tão estupidamente que se houvesse amanhã, acordava palerma. Só há o presente para nós. Pois hoje é tão certo, tão real e ontem eu já esqueci. É claro que não me esqueci de ti, mas preciso que me ajudes a lembrar. Porque tu sabes – olvidar por um momento pode doer uma vida inteira. Não me deixes nunca esquecer… que gosto muito da vida e de viver.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Relato Onírico

Num dos nossos passeios à tarde, por uma Lisboa cosmopolita e amena, somos surpreendidos pelas autoridades. Enfiaram-nos numa ambulância e consideram-nos mentalmente debilitados. A nossa prisão é um edifício magnânimo e ameaçador, as suas paredes são de um branco amarelado e doentio, as janelas de vidro aramado estão protegidas por grades e barras de ferro pintadas de branco que separam os largos corredores, tão presentes aqui como num labirinto.

C. e eu somos encaminhados para os nossos aposentos, um espaço vasto onde nos misturamos com a população geral de doidos, maluquinhos e loucos. Todo o exterior da sala está repleto de camas e na zona central encontram-se as mesas onde tomámos a primeira refeição, enquanto "psicologicamente inaptos". Assombrado pela perpetuação deste grande mal-entendido decido deitar-me, enquanto C. se junta aos outros numa cartada. O sono invade o consciente e sonho neste pesadelo.

Encontro-me agora a recuperar os sentidos no banco traseiro de um Rover 45 idêntico ao meu, no entanto, pintado de verde escuro e em mau estado de conservação. Por qualquer motivo sei que vou a caminho do escritório e era o meu irmão do meio que me conduzia até lá. Do nada, o carro vai em andamento e o condutor desapareceu. Tento a todo o custo desapertar o cinto e passar para trás do volante antes do veículo fazer a curva direito. Sucesso. Dirijo-me agora para o trabalho, hoje estranhamente localizado numa propriedade rural.

Conto a R., minha colega, o sucedido e mostro-lhe o veículo estacionado à nossa frente. Pouco impressionada a R. prefere desviar a conversa para outro assunto mais pessoal: "Agora começo a acreditar no me disse a V., há um túnel entre nós (entre mim e elas) e todos os dias desistes de o percorrer". Com estas palavras acordo, no asilo.

O hospital está agora em silêncio e pela porta entreaberta procuro o corredor, translúcido, num tom de branco ligeiramente fluorescente, que lhe confere o luar. Caminho em direcção aos balneários e lá chego sem antes me ter deparado com o mínimo sinal de vida. Lá dentro, perscrutava na escuridão um homem estranho, de cabelo negro já um pouco para o grisalho e com uma expressão inquietantemente perturbadora. "Tu vais-me ajudar a fugir" exclamou ele de modo sibilante. Obedeci sem hesitar.

Por fim, chegamos à zona de abastecimento de mercadorias e pelos vidros vejo o carro que o esperava lá fora. Num movimento muito rápido, abre as duas portas e passa para o lado de fora, accionando o alarme. Antes de desaparecer já livre, revela-me o insano enquanto se ria, "Vês, agora mataste-me".

O sinal sonoro ecoava há alguns segundos por todo prédio e os guardas assomaram em massa ao apelo. Encostei-me a uma sombra na parede e aí permaneci à passagem deles, que não reparam em mim. Excepção para uma enfermeira, que pára em frente ao meu negro esconderijo e mostra-me um olhar de censura, como que dizendo em silêncio "a culpa é tua". "Ela sabia", pensei eu.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Ataraxia

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

Fernando Pessoa
(Odes de Ricardo Reis)