quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Boa noite...

'If a person were to try stripping the disguises from
actors while they play a scene upon the stage, showing to
the audience their real looks and the faces they were born
with, would not such a one spoil the whole play? And would
not the spectators think he deserved to be driven out of
the theatre with brickbats, as a drunken disturber?... Now
what else is the whole life of mortals but a sort of comedy,
 in which the various actors, disguised by various costumes
and masks, walk on and each play their part, until the
manager waves them off the stage? Moreover, this manager
frequently bids the same actor to go back in a different
costume, so that he who has but lately played the king in
scarlet now acts the flunkey in patched clothes. Thus all
things are presented by shadows.' 
 
 Erasmo de Roterdão in Elogio da Loucura 

Uma breve palavra de agradecimento aos que por aqui passaram e perderam algum tempo a ler ou a ouvir música.

Um pedido de desculpas aos que só agora começaram a ler.

Porque, não voltarei a escrever, aqui ou em outro blog.

Numa breve reflexão:

As palavras são só isso. Aqui, deveria ter sido mais evidente, mas não o foi. Não escrevi para ser compreendido, como não  insulto a inteligência de ninguém, ao dizer que procuro compreende-los.  Prefiro conhecer a pessoa e perceber o que a move, ao invés de me identificar com isso. Tudo é auto-biográfico, ainda que a biografia seja um acto pessoal e subjectivo como todos os outros. Ao longo, de um ou dois anos a ideia foi transformar este espaço num refúgio, num escape. Quis pegar em situações concretas e generalizar o mais possível, para que o leitor não assistisse a um decalque de uma vida para a internet. Portanto, este último post, também não deve ser interpretado como um Deus Ex Machina, à moda da tragédia grega. Tudo tem um propósito num determinado momento e não o renego completamente.

De notar, também que escrevo de modo diferente, não por ambição ou pretenção pseudo-intelectual (até porque, já cometi e cometo erros de escrita). Portanto, e em aparente contradição com o que digo, isto não foi uma Merkabah intelectual.

Gostei de ter aqui perdido alguns minutos (às vezes mais do que isso), gostei de divagar e de  conhecer perspectivas diferentes (foi esse o propósito de manter este blog). Mas, hoje quero dormir descansado, sem ritos nocturnos, aprendendo a fechar os olhos à noite para ver bem durante o dia. Os escritos guardá-los-ei para mim, poupando-vos a separação do Eu que fala para um Tu e do Eu que escreve sozinho em frente a um ecrã.

Sem saber bem como acabar: despeço-me, reiterando os meus cumprimentos iniciais.

sábado, 26 de setembro de 2009

A Prisão de Vidro

Olá espelho, meu velho amigo, que bom é ver-te de novo...

Eu sorrio, mas tu olhas-me desaprovador. Censuras-me por fugir fora do ornato, em que sempre me prendeste e do reflexo de que me ensombraste. Apraz-me dizer velho amigo, da vida que fizeste tua e que agora voltou a ser minha: Aurum nostrum non est aurum vulgi.

Perdeste-me para o sorriso que passeia livre em mim, que não é mais do que sempre foi para ti. Do breu para a luz bastou-me levitar sobre as estrelas e ver-te assim, exíguo e fútil no fim.


Olá, meu velho amigo, lamento ver-te de novo...

Sorris, sôfrego e falso, prestes a afogar-te num mar de lágrimas. Eu olhei, perscrutei no teu âmago: não mudaste e desapareceste para voltar. Tentas escapulir-te do garrote e levanta-lo para outros verem uma auréola. Não é de mim que precisas, pois não te posso mostrar mais objecto do que sou.

Olha para ti: a tua desgraça pede uma faca aguçada. Confronta-me, ainda que usá-la em mim só macule a tua figura. Desfaz as amarras e afia a tua alma... regressa translúcido e transparente para que nunca te volte a ver.

domingo, 26 de julho de 2009

Narcissus

Qual namoro à antiga, espero pelas altas horas da noite para te dizer isto, para pensar nisto, em ti e no que me fazes sentir. Durante o dia evito-te, passo-te para trás de tudo o resto que deveria ser menos importante. E já te disse que não tenho paciência para nada, ultimamente? Mas, eis que aqui estamos ou, estou – como preferires – sozinho com a minha memória de ti. Com essa vaga recolecção, distante e tão próxima ao mesmo tempo, porque, efectivamente, te conheço.

Pareço saído de um anúncio para pastas de dentes, sorrindo insipidamente, enquanto te ouço falar. A tua voz chega a mim num eco distante e tudo o resto parece oco, superficial, por comparação, ao quão pouco me interessas. “Concordo contigo, às vezes mais vale pouco que nada” – digo como se te quisesse provocar, mentalmente.

Quero que saibas que és minha – não desse modo, primitivo e ingénuo – num plano ideal. Nem sabes como ansiei por uma exiguidade do que és e, agora, que aqui estás emudeço – não te mereço. A tua beleza parece inquestionável, ainda que o fizesse, os teus cabelos loiros e olhos esverdeados antecipavam o capricho. Conversamos durante horas a fio, numa esgrima furtiva, perscrutando qualquer subtil sinal de torpor – surpreendentemente não aparece. Saíste, real, de um véu de fantasia.

Para ti devo ser vulgar, uma personagem secundária de entre tantas que te aprecem ao caminho. Eu sei disso, pois, afectas-me no mesmo. Insossa. Desinteresso-me, enfadas-me, mais que isso, podia olhar-te todos os dias e serias tão atraente como o reflexo no espelho.

Quedo-me, nessa ficção e sei-a verdadeira, mas não a sinto. Olhas-me pelas esquinas e, inexplicavelmente, espero nesse corredor de solidão. Sabendo que estás a uma aresta de distância, aguardando-me ou não – estás perto. Mas, não te procuro e permaneço, apático, inconsequente, porque és igual a mim. Já te tinha dito que não tenho paciência? Para viver só, comigo. Olhar-te seria, contemplar o meu reflexo na água, do que quero e do que faço. E para ser franco, a água está fria demais para mergulhar. Talvez, seja por isso que abra mão da qual quero, para me quedar com quem mais mereça.


segunda-feira, 13 de julho de 2009

Metástatis

Algures entre o balançar da cortina e o tique taque incessante do relógio, descobri que preciso de ajuda. Já não sou a pessoa que me esforcei tanto para ser, não estou nem perto disso. Faltam-me qualidades, sinto-me limitado. Ah e tenho dores, como chagas, lembrando-me a todo o momento que ainda estou vivo, nesta existência medíocre. “O telemóvel ainda me vai provocar um tumor no cérebro”, pensei tantas vezes. É tão difícil descansar neste sofrimento atroz. Pára. Pára! Mas nunca param…

Uma sala branca, iluminada por uma luz incandescente e tranquila, perpétua e segura. Quem me dera lá estar e poder falar com alguém, dizer-lhe que preciso de ajuda. Esquecer tudo o resto, todo o significado das coisas. Falar tranquilamente, sobre tudo, por aquilo que é e não pelo que traz. Queria sentir o universo fluir dentro de uma sala, de uma conversa, de um entendimento real entre duas pessoas.

Onde estou agora não pode ser mais longe disso. Ao fundo do corredor, um foco de luz ténue entra por uma janela, insuficiente para iluminar o chão, formando um nevoeiro negro que me arrasta pelas pernas. Sinto as raízes da enfermidade, sugando-me a força e o siso. Atirava-lhe com ferro e fogo se pudesse, mas o mal está dentro mim… é tarde demais. Esta dor é uma ilusão. São sanguessugas ansiando por vida, ajudar-me a mim seria ardósia para elas. Esperem só até perceberem que já não resta nenhuma.

terça-feira, 30 de junho de 2009

Histórias de Fantasmas - Parte VII

Mais tarde, contou-me que o estabelecimento de que lhe falei havia ardido no mesmo sinistro que acabou com a aldeia. Ainda, esse café, desaparecido hoje era explorado por ela e pelo marido, que coincidentemente ou não, correspondia à descrição do homem com quem falei antes. Essas palavras marcaram-me – Nunca acreditei quando falavam em assombrações nesse sítio, mas um lugar desses, amaldiçoado por Deus, não volta a ter descanso… e a nós, que de lá escapámos, o vai tirando. Cada vez que recordo isto arrepio-me copiosamente, mas não por ter medo de fantasmas ou assombrações. É algo pior. Aquele lugar pareceu-me tão autêntico e continua tão vivo na minha memória que não consigo dizer o que é realidade ou imaginação. Vi os destroços da aldeia e fui até à Vila nova para ver que era bem diferente do que “sonhei”, só o cruzeiro tinha sido aproveitado. O velhote que o empregado do café chamou de J. e que primeiro me avisou da estrada cortada era tão real… que contrastava com as duas habitantes da Villa Flores, aquelas duas almas que perderam o seu mundo no incêndio, isoladas de tudo e de todos, numa solidão doentia.

Sei que todos têm uma história com o seu quê de sobrenatural para contar, sobre alguma situação por que passaram e nunca conseguem explicar totalmente. Até é comum empolgarmo-nos e acabarmos por atribuir o inexplicável a um fenómeno místico qualquer, mas as melhores histórias (e acho que esta é uma delas) são aquelas em que a diferença não é tão óbvia assim.

Histórias de Fantasmas - Parte VI

Uma poça de água. Tépida e fria ao mesmo tempo. Vejo-me sentado numa sopa primordial de suor e lágrimas de terror, qual pensador de Rodin com uma enxaqueca monumental. Só me resta acordar deste pesadelo – e faço-o.

Mesmo antes de abrir os olhos vem-me à cabeça a dor do sonho e estou envolto em água, não, é suor. Começo a processar a tontura que voltou do sono para o despertar. Estou deitado numa cama que se encontra por baixo da janela de um quarto exíguo. As paredes são de um branco amarelado, doente e moribundo, infiltrado pelas humidades no tecto. Sinto-me dorido quando respiro e o coração palpita-me na testa. Atordoado e a desfalecer, fecho os olhos… Seria a noite passada um sonho febril?

Quando volto a mim já não estou sozinho. A figura de uma criança, estende-me qualquer coisa que não tenho força para agarrar. Perante a minha relutância a servil petiz pousa a carga na cadeira abeirada ao fundo da cama e vai-se embora sem um pio. Era um tabuleiro, olho, já desperto. Entra agora uma mulher – Como se sente hoje? – Pergunta-me ela. Respondo com outra questão – O que me aconteceu? – Não se lembra? Não admira. Deve ter batido com força. – Fez uma pausa e recomeçou. A minha filha encontrou-o acidentado ao fundo da estrada. Deve ter-se despistado e por sorte acertou num pinheiro que não o deixou tombar pela ribanceira abaixo. Não admira que me doa cabeça, pensei. – Aqui não temos carro nem telefone, daí que o carregámos para casa a meio da noite. Também não parecia estar ferido com gravidade, porque se mexia e falava. Claro que se me parecesse que corria perigo, eu própria tinha ido à Vila nova buscar o médico. – explicou ela como se quisesse desculpar-se. Eu é que agradeço os seus cuidados e peço desculpa se lhe causei transtorno – respondi, procurando relaxá-la. Passei por uma aldeia no caminho para cá, Vale de Gaios, terá sido. – Sim, nós chamamos-lhe “Vila nova”, porque existia uma mais acima com o mesmo nome, mas foi destruída por um incêndio. Foi nesse fogo que perdi a vista há mais de 10 anos – por esta não esperava. Abriu os olhos, deixando-me ver a lívida retina.

Sabia-o agora, tratava-se da mulher da noite passada, não era agora tão perturbante. O cabelo louro, apanhado com um gancho, parecia mais gasto à luz do dia. As suas feições indicavam que se tratava de uma mulher nos seus trinta e tal anos, embora o cansaço e o desgaste que eram notórios, a fizessem parecer mais velha, tornando-se difícil dizer a sua idade real. No entanto, possuía uma beleza invulgar, que não lhe era natural, isto é, a austeridade que adquiriu ao ter que se adaptar à cegueira conferiu-lhe personalidade nos traços físicos. A mágoa e a dureza da vida não lhe deram este aspecto, antes a resistência e a preserverança se impuseram e lhe permitiram sobreviver num novo mundo, sem luz.

Após um momento de silêncio incómodo, quis continuar a conversa – Vinha à procura da estrada nacional e o dono do café, “Os Três Tios” (penso que era isso), contou-me do incêndio que destruiu a estrada. Por isso, voltei para trás. A expressão dela tornou-se grave – Peço desculpa, porque acabei de me lembrar que tenho afazeres a tratar na cozinha. Volto depois para saber como está. – disse saindo visivelmente incomodada. Instintivamente lembrei-me do dono do café, “Flores”, seria aqui a casa dele?

Histórias de Fantasmas - Parte V

A escada dava para um corredor estreito e liso, sem quadros ou outro tipo de decoração, observei à luz da lua que entrava pela janela ao fundo do corredor que parecia atravessar toda a habitação. Procurei por sinais de vida, ainda que nada o indicasse. - Faz Favor! – tornei a chamar infrutiferamente. Sentia-me já agastado com esta situação toda, pensando se não seria emboscado pelo dono da casa, mas era a indiferença que me inspirava medo. Sabia-o, quase de instinto, que alguém se tinha dado conta da minha invasão e me perscrutava no escuro por alguma fresta, fechadura ou até agachado nalgum canto que me tivesse falhado à vista. Alguém me aguardava furtivamente.

Passos… vinham do fundo do corredor, tornando-se distintos. Estes não eram do mesmo tipo que ouvi antes, estavam mais pesados e vagarosos, até o ranger parecia mais forte. Passa à janela uma mulher, alta e loira, vestida de um branco lívido, eclipsando a iluminação astral que entrava pelo fenestral. - Filha!, vem à mãe, não me ouves?... – gritou ela, no entanto, esta voz não era natural, parecia que se arrastava para um vácuo. Suava agora em bica e sentia o coração a escalar o peito enquanto a estranha saia do alcance ocular. Foi um susto, não se deram conta de ti e foi tudo muito estranho, porque é isso que parece quando se entra por casa de alguém a meio da noite. – pensava para mim, ao tentar aliviar o sucedido da cabeça. Enchi-me de força e fui até à janela do fundo. Nada, não havia nada, o corredor terminava a dois passos para a esquerda numa porta fechada.

Lá fora olhei o quintal, povoado por meia dúzia de árvores de fruto, tirando isso só restava matagal que se adensava em redor da propriedade. Estava tudo disposto num tom cinzento-escuro conferido pelo luar, no entanto, distinguiam-se perfeitamente as culturas e utensílios que vagueavam por ali, até o reflexo da água num pneu velho consegui perceber. Concentrei-me na porta, era só bater e abri-la se necessário, tinha levado já muito longe esta invasão, até para voltar para trás. A ideia afigurava-se bastante tentadora, pelo que, contemplei o corredor vazio de novo.

De súbito, apareceu outra vez a mulher, de costas, preparando-se para descer as escadas. Minha senhora! – chamei, ao dar dois passos para me pôr na sua peugada. Nem foi preciso mais, porque ela se voltou. Era loira, de finas feições, mas para meu espanto, os olhos eram de um branco liquido e a claridade que aparecia nas minhas costas iluminava-lhe os contornos, conferindo-lhe uma aura assombrosa. Andava agora ao meu encontro, em passos pesados e maquinais. E tu não tens sido senão um peso nos nossos ombros! – exclamou, naquela voz cavernosa. Sentia-me completamente imobilizado de terror, enquanto ela avançava para mim tenebrosa e ameaçadora. O seu olhar penetrava para lá da minha razão e quando lhe vi o branco dos olhos, só branco, já a coluna vertebral tinha criado raízes no soalho. Tombei inerte à sua passagem, não sem antes a deixar atravessar-me gelidamente.